terça-feira, 24 de agosto de 2010

A ERA DE BRAUDEL

Apresentada muitas vezes como um grupo homogêneo, a Escola dos Annales traz, não somente nos métodos, mas sobretudo em seus membros, grandes divergências individuais o que leva o autor a considerá-la mais como um Movimento dos Annales do que uma escola.
Peter Burke trabalha todo o seu livro encima das obras produzidas pelos principais autores da Escola dos Annales, e dedica um capítulo especial a Braudel, considerado por ele como o herdeiro do stablishment histórico francês conquistado anteriormente por Lucien Febvre.



O autor divide o capítulo em três partes. Na primeira, denominada O Mediterrâneo, Burke faz um pequeno resumo da biografia de Braudel, anteriormente à sua entrada nos Annales, culminando com o momento em que ele conhece Febvre e passa a ser adotado por este como um “filho intelectual”. A partir de então, o foco do autor volta-se para a obra O Mediterrâneo.

O livro de Braudel é caracterizado não somente pela sua extensão (600 mil palavras segundo o Burke), mas, sobretudo pela forma original em que aborda o passado. O tempo é analisado de três maneiras distintas: primeiramente há uma história quase estática que representa a relação do homem com o ambiente; a segunda apresenta uma história que se movimenta, porém em um ritmo lento, referente à estrutura econômica, social e política; e, a terceira seria a tradicional história dos acontecimentos.

Apesar da terceira parte conter a narrativa histórica de eventos, esta não é caracterizada como uma história tradicional, haja vista que Braudel enfatiza a idéia da insignificância dos eventos, além de defender a existência de um certo determinismo que limita a liberdade de ação dos indivíduos. Segundo Braudel, a história dos eventos seria a mais superficial, sendo necessário um mergulho maior para se entender a história.

Ir mais a fundo é o objetivo de Braudel ao definir a segunda parte de seu livro como “Destinos coletivos e movimentos de conjunto”. Nela, Braudel conta a história das estruturas, onde as mudanças ocorrem ao longo do tempo, das gerações, sendo este o motivo pelo qual as pessoas contemporâneas aos fatos não os percebem.

A primeira parte do livro, portanto, vai ainda mais fundo, e revela uma história quase imóvel, denominada por Braudel como “geo-história”. Segundo Burke, o objetivo de Braudel seria o de mostrar que sem as características geográficas, não é possível compreender a história das tendências gerais.

Burke apresenta o que seriam as “tradições diferentes” que teriam orientado o trabalho de Braudel. Cita, além dos Annales e de Lucien Febvre, a influência da escola geográfica francesa com Vidal de la Blanche, o geógrafo alemão Friedrich Ratzel e do medievalista Henri Pirenne.

O autor do livro expõe as críticas feitas a O Mediterrâneo de Braudel quanto à sua falha ao tentar fazer uma história total, mesmo deixando de lado em sua obra temas como atitudes e valores. Outra crítica importante, justamente por se referir a um objetivo defendido pela Escola dos Annales e não concretizado por Braudel em seu livro, refere-se à idéia de história-problema. Burke alega ele mesmo ter feito essa pergunta a Braudel em uma entrevista em 1977, que teria respondido simplesmente que seu único problema seria o de demonstrar que o tempo avançava em velocidades diferentes.

Outras críticas a Braudel são comentadas por Burke, como a organização tripartite do livro e o determinismo do autor. Burke, contudo, defende o determinismo braudeliano que não considera simplista como o fazem os seus críticos.

A favor de Braudel, Burke cita sua contribuição no sentido de transformar as noções de tempo e espaço. Através de O Mediterrâneo, Braudel daria aos leitores a noção da importância do espaço na história e uma nova noção do tempo, divido em tempo geográfico, social e individual. Burke enfatiza que a idéia de curta e longa duração não era nova, contudo Braudel teria originalmente combinado o “estudo na longa duração com o de uma complexa interação entre o meio, a economia, a sociedade, a política, a cultura e os acontecimentos” (BURKE, 1992, p. 38). Dessa forma, Burke valoriza a visão de Braudel sobre a história definindo-a dentro dos parâmetros da história total.

A segunda parte do capítulo destinado à Braudel intitula-se O Braudel das últimas obras e pretende relatar a vida e, em especial, as obras do autor no período de 1956 a 1985.

Ao assumir o cargo de diretor dos Annales, em 1956 após a morte de Febvre, Braudel, com sua personalidade dominante, transforma a revista dos Annales. A princípio, com o afastamento de Mandrou (outro filho intelectual de Febvre) em 1962 do cargo de secretário executivo da revista, devido a dissensões internas com o próprio Braudel, e, posteriormente, de forma mais radical em 1969 com o recrutamento de jovens historiadores como Le Goff, Le Roy Ladurie e Marc Ferro. Sua intenção: renovar definitivamente os Annales.

Braudel mantém a política de Febvre no que tange a interdisciplinaridade promovendo a convivência dos historiadores com antropólogos e sociólogos, tendo mantido sua influência mesmo após sua aposentadoria em 1972. Burke enfatiza a forma rigorosa com a qual Braudel dirigiu os Annales e compara-o a Felipe II alegando que, apesar de não ter um império tão vasto quanto este último, Braudel, contudo, poderia ser considerado como “mais decidido”.

Burke lega à Braudel o desenvolvimento da história da cultura material, em especial através de sua obra Civilization matérelle et capitalisme, também em formato tripartite. O autor descreve a obra do historiador dos annales e reforça a idéia de um Braudel geógrafo ou geo-historiador. Contudo, também salienta a ausência do estudo do simbólico, característica importante em Febvre, porém não adotada por Braudel.

Apesar das críticas feitas a Braudel, o autor defende a superioridade da ideia braudeliana do tempo tripartite, salientando sua determinação de, aos setenta anos de idade, ainda embarcar em mais uma obra de história global, dessa vez, de seu próprio país. Contudo, define L’identité de la France como sendo uma obra previsível por apoiar-se, como sempre, nas obras de seus geógrafos favoritos.

Burke dedica a terceira parte sobre a Era de Braudel ao nascimento da história quantitativa. Nessa parte, ele sai um pouco da temática “Braudel” objetivando falar também sobre as tendências que surgiram neste mesmo período dentro dos Annales. A revolução quantitativa é considerada por Burke a tendência mais importante desta fase.

O autor salienta a importância de Ernest Labrousse, historiador influente com muita ascendência sobre os jovens historiadores e, portanto, considerado por Burke como tendo ocupado papel central nos Annales. Contudo, Labrousse era marxista, fato importante já que devido a ele o marxismo teria começado a penetrar nos Annales.

Outra contribuição de Labrousse para os Annales foi a introdução da estatística a partir do incentivo de economistas como Albert Aftalion e François Simiand. O livro de Labrousse vem recheado de tabelas e gráficos e é considerado por Braudel o maior livro de história dos últimos vinte e cinco anos. Peter Burke inclusive levanta a suspeita da influência de Labrousse na segunda edição de O Mediterrâneo pela valorização de uma história quantitativa através da inserção de tabelas e gráficos que não existiam na primeira edição.

No que tange a produção entre os anos 50 e 60, Burke enfatiza a importância de Sevilha e o Atlântico, de Chaunu, apresentada pelo autor como uma tentativa de imitar ou mesmo de superar a obra de Braudel e que tomaria como região de análise o oceano Atlântico. Chaunu inaugura termos como estrutura e conjuntura, além de dar ênfase ao comércio e às tendências econômicas do período abrangido pelo livro.

A história quantitativa também faz surgir a história da população, ou história demográfica, que aparece como conseqüência da consciência da explosão demográfica mundial na década de 50. Posteriormente, aliada a história social, fez nascer a história regional que combinaria, além da nova história demográfica, a estrutura braudeliana com a conjuntura de Labrousse.

As pesquisas, geralmente orientadas por Braudel ou Labrousse tinham por objetivo a idade moderna, contudo como excessão a essa regra, surge Georges Duby com uma monografia supervisionada por Charles Perrim baseada nos séculos XI e XII tendo como fonte a geografia histórica.

Burke apresenta também outro historiador, sendo este um desafeto de Braudel, mas importante para os Annales, apesar de não ser um de seus membros, Roland Mousnier. Ele teria ajudado Labrousse com um estudo sobre o século XIII. Apesar de ter um trabalho mais voltado para a história política do que para a econômica, seus estudos são considerados pouco divergentes dos estudos feitos pelos Annales, sendo, inclusive, considerado por Burke como o único historiador francês a valorizar e utilizar a abordagem comparativa de Bloch com tanta seriedade.

Outro historiador apresentado por Burke em seu livro foi Le Roy Ladurie. Apesar de ser um discípulo de Braudel se assemelhando a ele em muitos aspectos, Le Roy prefere afastar-se da tradição braudeliana. Em seu livro Le paysans de Languedoc, utiliza-se de uma organização cronológica, ao invés de uma divisão por estrutura e conjuntura. Além disso, enfatiza questões culturais e tendências econômicas como fatores importantes no entendimento histórico. Por este fato é considerado por Burke como sendo o primeiro autor a perceber a deficiência do paradigma braudeliano e a tentar modificá-lo.

O livro de Peter Burke, em especial o capítulo aqui analisado sobre a era de Braudel, cumpre com o objetivo apresentado pelo autor de analisar as obras da Escola dos Annales a fim de demonstrar a não homogeneidade de seus autores e o seu desenvolvimento ao longo do tempo.

Contudo, deixa ao leitor uma sensação de “quero mais” no que tange à ausência de maiores informações quanto à dinâmica interna dos membros da Escola dos Annales.

Braudel é citado ao longo de todo o capítulo, mesmo na terceira parte em que o autor pretende apresentar as outras tendências que surgiram dentro dos Annales, o que demonstra a participação efetiva de Braudel dentro da Escola e, consequentemente, sua importância. Entretanto, há uma espécie de protecionismo por parte de Burke que, apesar de expor as críticas feitas ao trabalho de Braudel, tenta de todas as formas amenizá-las através de uma ênfase na importância do método tripartite do historiador. A divergência entre Braudel e Mandrou é relatada de forma superficial, sem caracterizar o motivo da saída deste da Revista dos Annales, e o aparente rigor de Braudel na condução da revista aparece somente nas entrelinhas.

O livro de Peter Burke pode, portanto, ser considerado um livro de apologia à Escola dos Annales devido à sua parcialidade.

Peter Burke é um historiador inglês doutorado em Oxford. Foi discípulo de Pierre Chaunu que o introduziu ao mundo dos Annales. Escreveu obras importantes como A escrita da história (1991) e História e teoria social (1991), dentre outros.



BURKE, Peter. A era de Braudel. In: A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). 2ª Ed. São Paulo: UNESP, 1992. p.31-54

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